Algumas pessoas dizem que os dependentes químicos são pessoas egocêntricas. Precisamos repensar isso. Os dependentes químicos são antes pessoas centradas no dependente químico à custa do Eu.
O processo de recuperação da doença da dependência química encontra-se na renovação do Eu. Para nos recuperarmos, temos de nos dedicar ou de voltar a dedicar-nos ao Eu. Por outras palavras, o Eu tem de se tornar outra vez importante.
A recuperação é o processo de nos centrarmos no nosso Eu. Nas medalhas que são oferecidas aos dependentes químicos em recuperação nos aniversários da sua abstinência podem ler-se as palavras:
- “Seja honesto contigo mesmo”.
Isto é o princípio da recuperação: atenção ao Eu e relacionamento com o Eu.
No dependente químico praticante existe uma relação entre o Eu e o dependente químico, dentro de sua personalidade.
No dependente químico em recuperação existe uma relação entre o Eu e os outros.
O que muda? De que forma são as duas relações diferentes entre si? O elemento chave é aquele que se encontra em qualquer relação íntima: honestidade.
O Dependente químico é incapaz da honestidade que alimenta e sustenta o Eu. Assim, é através da honestidade que começa e se desenvolver uma relação duradoura com o Eu e com os outros.
A honestidade cria a confiança e a confiança cria a segurança. A recuperação depende da segurança. Para crescermos, precisamos de um ambiente seguro para o Eu. Os dependentes químicos em recuperação criam esta segurança ao admitirem honesta e respeitosamente o perigo em que vivem.
Admitem e aceitam a personalidade doentia que faz parte deles:
- “Olá. Chamo-me Maria e sou alcoólica.”
- “Olá. Chamo-me João e sou dependente sexual.”
- “Olá. Chamo-me Júlia e sou uma jogadora compulsiva.”
Nas reuniões de grupo, os dependentes químicos apresentam-se como aquilo que na verdade são. Admitindo honestamente que são dependentes químicos, podem começar a relacionar-se com o Eu e com as outras pessoas. Por outro lado, a negação traz com que o dependente químico cresça, e o perigo para o Eu e para os outros aumente.
Desenvolver relações naturais
A confiança é a base de qualquer relação, quer a relação seja conosco ou com os outros. Se a relação não tiver por base a confiança, torna-se numa luta. O mesmo se aplica à relação que mantemos conosco. A confiança dá-nos a capacidade de nos recuperarmos e a liberdade de entrarmos em contato com os outros.
Os grupos dos Doze Passos e outros grupos de autoajuda precisam ser locais de descanso seguros, onde se possa parar e sentir segurança. Concedendo-nos um tempo de repouso e deixando que a recuperação comece a fazer-se, podemos começar novamente a relacionar-nos com as pessoas de forma saudável.
Abrandarmos a nossa marcha e adotamos um andamento humano, isto é também um elemento essencial para que se possamos estabelecer relações. Imagine como seria uma conversa com alguém fora do carro, a partir de um carro que se deslocasse a 70 quilômetros por hora. Impossível!
Mas se abrandar a velocidade e parar poderá falar com as pessoas fora do carro. A maior parte dos dependentes químicos move-se a tal velocidade que entrar em contato com qualquer coisa fora dos seus “veículos” se torna impossível. O que causa medo é que, quando os dependentes químicos olham pelo espelho retrovisor, veem o seu Dependente químico confortavelmente sentado no banco de trás perguntando, “Não pode fazer com que isto ande mais depressa?”
Alguns casos, os dependentes químicos em recuperação precisam aumentar de velocidade de forma a acompanhar o andamento do mundo que os rodeia, em vez de se manterem sentados num veículo parado vendo toda a gente passar por eles. A recuperação é um processo de reentrada no mundo.
Sair de si
Uma vez que os dependentes químicos tenham passado pelas fases de admitirem honestamente e aceitarem verdadeiramente a sua doença, estão prontos a estabelecer relações fora de si próprios.
É importante compreender que os dois passos mencionados têm de ser dados a fim de que os dependentes químicos se possam tomar dignos de confiança para os outros.
Se os dependentes químicos não forem de confiança para que se possa conviver com eles, acabarão muitas vezes por se ligar a pessoas que são tão pouco dignas de confiança como eles próprios. Uma vez começada uma relação segura conosco, (não é necessário que esteja firme, basta que tenha começado), a pessoa está pronta para iniciar e virar-se para o exterior.
As outras pessoas podem já ter tentado ajudar o dependente químico, mas agora é ele que pode debruçar-se para fora à procura de ajuda. Pode desafiar a corrente interior da dependência química. Ir à procura da família ou dos amigos, de um Poder Superior ou da comunidade, é uma escolha pessoal.
Na realidade, os dependentes químicos precisam formar relações íntimas com todos estes grupos, mas devem centrar-se em primeiro lugar numa área determinada.
Pode Superior Espiritual
Muitas pessoas começam a recuperação partindo de uma relação com o Eu para começar uma relação com um Poder Superior Espiritual. No primeiro estágio da recuperação, lidar com as pessoas é muitas vezes demasiadamente assustador.
A relação da pessoa com o seu Eu está ainda muito frágil para que possa estabelecer relações profundamente empenhadas com os amigos ou a família. Por isso, formar uma relação com um Poder Superior Espiritual torna-se com frequência um ponto de partida natural quando a pessoa começa a aventurar o mundo exterior.
Os dependentes químicos em recuperação principiam a notar o Poder Superior nos outros. As pessoas em recuperação falam muitas vezes a respeito do perigo que representavam para si mesmas e para os outros quando praticavam ativamente a sua dependência química. Falam também da sua relação com um Poder Superior, que as ajudou a tornarem-se dignas da confiança dos outros.
Nas reuniões de grupo, as pessoas sorriem e ajudam-se, não desejando em troca receber mais do que simples respeito da parte dos outros. Sempre me espantou muito ver como os novos membros que entram num grupo podem ser cumpridores e atentos. Observando as pessoas que partilham da sua dignidade entre elas, os dependentes químicos começam a sentir a presença ativa de um poder que lhes é superior. Começam a desejar fazer parte desse intercâmbio. Começam a sentir-se e a ver-se outra vez como pessoas, e não como objetos projetados de crise em crise.
Intimidade
Ao acreditar no processo de recuperação, a pessoa estabelece uma relação com um Poder Superior que olha por ela. A dependência química representa, tal como na maioria das doenças, um poder maior do que o nosso, mas a recuperação tem também um poder maior do que o nosso. A diferença principal reside no fato de, enquanto uma se baseia na desonestidade e destruição, a outra se baseia na solicitude e na honestidade.
À medida que os dependentes químicos em recuperação se apercebem das formas naturais como as outras pessoas se alimentam espiritualmente, começam a querer ter relações com os outros a um nível íntimo. Começam a pôr em questão a crença adictiva que diz, “Não se deve confiar nas pessoas – tu és muito diferente – não és como eles.”
Os dependentes químicos em recuperação descobrem que são como os outros. Todos nós somos únicos, mas ao mesmo tempo semelhantes, especialmente dentro de uma comunidade de pares.
Os dependentes químicos em recuperação começam a tomar consciência de que encontraram gente que podem compreender, gente que é capaz de compreendê-los. Por isso, as relações íntimas começam a adquirir muito sentido.
Honestidade
Mais ou menos por esta altura, o Dependente químico no interior da pessoa começa a ter medo e começa a dizer à pessoa, “Estas pessoas são falsas” ou, “Olha vê como é uma pessoa cheia de raiva e controladora? É melhor não confiar nela.” Mas depois, a pessoa volta a uma reunião na semana seguinte e vê essas pessoas falarem de si próprias sem qualquer vergonha.
Reconhecem e admitem o seu lado adictivo de forma honesta e respeitosa. O objetivo dessas pessoas é o de se responsabilizarem por si e não o de negarem a sua responsabilidade. A honestidade das pessoas que rodeiam o dependente químico em recuperação desafia o sistema de crenças doentio e adictivo.
Ao confiarem no processo natural de recuperação, os dependentes químicos em recuperação aventuram-se mais um pouco para o exterior e começam a partilhar coisas sobre si. Podem estar observando atentamente, esperando ser rebaixados ou metidos a ridículo (e o seu lado doentio com esperanças de que isso aconteça). Isso não acontece.
Em vez disso, as pessoas reagem de forma natural. Dizem, ” Sei como é que se sentes. É horrível, mas vai passar. É bom ouvir você falar de si.” As pessoas nestes grupos esforçam-se por aprender a ouvir os outros. As relações naturais começam a desabrochar. No seu, íntimo, o dependente químico em recuperação começa a sentir-se ligeiramente ligado àqueles que corresponderam. Começa a sentir-se ligado aos que no grupo partilham de uma experiência semelhante.
Processo de recuperação do dependente químico
Lentamente, os dependentes químicos em recuperação estabelecem relações que se baseiam em AJUDAR os outros em vez de USAR os outros. Se uma pessoa em recuperação quiser realmente usar alguém, será claro a esse respeito, “Preciso de ti para me ajudar a ficar sóbrio, por isso faz favor e volta” é uma afirmação que se ouve muito nas reuniões de grupo.
As pessoas dão umas às outras o seu número de telefone e dizem, por exemplo, “Se sentir que precisa beber, me liga.”
Os dependentes químicos em recuperação começam a sentir-se de novo importantes, cria-se o sentido de auto estima. Tomam consciência de que têm qualquer coisa para dar que pode ajudar os outros. Quando vão às reuniões, os outros ficam contentes de vê-lo. Provavelmente as famílias estão contentes de os verem ir a reuniões, mas ainda desconfiadas a seu respeito.
Nas reuniões, as pessoas ajudam todos a tomar consciência de que a reação das suas famílias é natural e lógica. “Por que é que haviam de confiar em vocês? Conhecem melhor do que ninguém o seu Dependente químico e como podem ser mesquinhos.
No grupo os companheiros dizem, nós temos confiança em vocês. Têm comparecido regularmente e têm participado ativamente nas reuniões e parecem desejosos de recuperar. Por isso, deem tempo às suas famílias – elas têm necessidade disso.”
Através deste tipo de diálogo, os dependentes químicos em recuperação começam a ter novamente a experiência da lógica natural. O que as pessoas do grupo têm para dizer faz sentido e, com o tempo, toda a gente pode constatar que funciona. O grupo está aprendendo o processo de recuperação natural que se encontra nas relações honestas.
Novos valores da recuperação
Através das relações com as outras pessoas nas reuniões, os dependentes químicos em recuperação sentem que estão renovando-se. Começam também a relacionar-se com os princípios e conceitos existentes na recuperação – princípios e conceitos tais como:
- admitir, aceitar, ser honesto, acreditar, entregar, ser solícito, pedir aquilo de que têm necessidade, examinar-se, rezar, meditar e despertar para o sentido espiritual.
Todos estes princípios passam a fazer parte do Eu do dependente químico em recuperação. Princípios como mentir, esconder e negar tinham- se tornado parte do Dependente químico.
À medida que os dependentes químicos em recuperação aprendem a forma de ter relações segundo conceitos e princípios saudáveis, o Eu renova-se. Os dependentes químicos em recuperação começam a sentir-se felizes e serenos interiormente porque se estão a tornar pessoas que merecem novamente respeito. Estão sendo pessoas honestas, com valores que jogam a seu favor.
A recuperação através do respeito pela dependência química


À medida que os dependentes químicos em recuperação ganham força interior, podem começar um processo de autoexame que é necessário para sustentar as relações acabadas de formar e para recuperarem as relações que se perderam por causa do processo da dependência química.
Como parte deste autoexame, os dependentes químicos em recuperação são continuamente forçados (de uma forma afetuosa) a falar no inferno para o qual a dependência química os arrastou e às suas famílias. Ao contarem as suas histórias aos seus iguais, os dependentes químicos em recuperação começam a ganhar respeito ao poder da sua dependência química e ao Dependente químico que vive dentro de si.
Diz-se que um bom general pode odiar o inimigo, mas terá sempre grande respeito por ele. Ao contarem repetidamente as suas histórias e ao ouvirem as dos outros, os dependentes químicos criam respeito pela dependência química, o suficiente (espera-se) para os ajudar a trabalhar seriamente na sua recuperação.
Ser carinhoso consigo mesmo
Na dependência química, qualquer espécie de autoexame acaba em auto abuso. Nos grupos de recuperação os dependentes químicos aprendem que se tratam mal a si próprios, continuam a agir como dependente químicos.
Aproximando-se de si e dos outros com dignidade e respeito, aprendem a perder esse hábito. É uma forma de viver com sobriedade baseada na recuperação; pode ser uma lição difícil, que levará para muitos, algum tempo para aprender, especialmente para aqueles que cresceram rodeados por adicções.
Conclusão
Em recuperação o dependente químico irá precisar sempre fiscalizar o dependente químico interno, para o resto de sua vida.
Na recuperação, há ocasiões em que muitas pessoas podem continuar a sentir e ouvir o Dependente químico que está no seu interior. Se o Dependente químico começar a falar alto demais ou a tornar-se muito tentador, os dependentes químicos em recuperação podem ir ter com as suas novas relações e a segurança que nelas encontraram.
A dependência química é “astuciosa, desconcertante e poderosa!” O Dependente químico não desiste facilmente. A maior parte das vezes, o Dependente químico instala-se e faz comentários mal-humorados que são bem arquitetados e causam dúvidas à pessoa.
Uma das coisas que as pessoas precisam fazer ao longo da recuperação é fiscalizar o seu Dependente químico O Dependente químico que está no seu interior procurará outros objetos ou acontecimentos para formar uma relação adictiva.
• Os alcoólicos em recuperação podem encontrar-se, ao fim de dois ou três anos, com mais 20 ou 30 quilos;
• Os dependentes sexuais em recuperação podem começar a beber ou a ir às corridas demasiadas vezes;
• Os dependentes ao jogo podem começar a tomar umas bebidas enquanto jogam;
• Os dependentes a sexo podem começar a usar laxantes regularmente a fim de controlarem o seu peso.
Isto traz parte do aspecto “astucioso” da dependência química a que todos os dependentes químicos em recuperação precisam prestar atenção. O Dependente químico interior tem uma dependência química favorita, mas também lhe servem outras formas de dependência química. As adicções e compulsões secundárias podem tornar-se adicções primárias se a pessoa não fiscalizar o Dependente químico.
Fabrício Selbman é Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento, e também é:
- Formado em marketing e pós-graduado em gestão empresarial;
- Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialização na Europa sobre o modelo de tratamento Terapia Racional Emotiva (TRE);
- Psicanalista pela Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Professor de Especialização na Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento.