Quando a doença da dependência está instalada, os aspectos comportamentais da dependência química tornam-se predominantes. E começa a acontecer a perda de controle deste comporto, que é o lado mais visível, e que facilmente desperta a atenção.
O comportamento doentio e adictivo de gastar muito dinheiro, ir a livrarias pornográficas ou comer demais e vomitar, acontece depois do desenvolvimento da dependência química. Agir assim são sinais de descontrole interno, há o descontrole de comportamento.
Numa fase secundária da dependência química a pessoa perda de controle comportamental. Com o desenvolvimento da doença, eles são mais frequentes; a pessoa se preocupa com o uso de álcool e outras drogas ou por acontecimentos e sentimentos que causam o prazer intenso e compulsivo.
É nesta fase que os outros percebem que algo está errado e começam a sentir e a observar a presença da dependência química.
Na fase inicial, o dependente químico comportava-se dentro de limites socialmente aceitáveis. O jogador jogava dentro dos limites; o dependente à comida comia dentro de limites normais; o alcoólico bebia “socialmente” a maior parte do tempo. Mas todos desenvolviam interiormente uma dependência mental profunda e obsessiva.
Nesta fase mais avançada, desenvolve-se a dependência comportamental, que acontece ao pôr em prática o sistema de crenças da dependência química de forma ritualista e o seu comportamento se descontrola.
Uma vez instalado um controle emocional e mental, a pessoa torna-se dependente da doença e não da mudança de humor, da droga ou do acontecimento. O sistema de crenças adictivo passa a ser o fundamento e estilo de vida.
Os dependentes químicos começam a organizar as suas vidas e relações, usando a lógica adictiva e doentia para se orientarem. Nesta fase mais avançada da dependência química, a dedicação do comportamento ao processo adictivo torna-se totalmente abrangente.
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Estilo de vida do dependente químico
Entregar-se ao processo doentio e adictivo pode vir de várias formas, determinando o estilo de vida do dependente químico. A pessoa começa a:
• Mentir, mesmo quando é mais fácil dizer a verdade;
• Culpar os outros, sabendo que não são culpados;
• Ritualizar o seu comportamento;
• Afastar-se dos outros.
A pessoa passa a ter um mundo emocional e mental secreto para se refugiar, e se retirar a fim de viver um estilo de vida adictivo. É nesta fase que:
• Os dependentes à comida começam a esconder comidas;
• Os dependentes ao sexo começam a ir às prostitutas ou ter relações múltiplas;
• Os dependentes ao jogo abrem contas secretas ou arranjam empregos secretos;
• Os alcoólicos começam a beber aguardente antes de ir para casa.
Cada exemplo mostra a dedicação do comportamento ao processo da doença da dependência. Cada vez que atuam destas formas, estão cada vez mais dependentes da doença da adicção e da sua lógica e cada vez menos de si próprios e de quem os amam.
Os dependentes químicos encontram razão para isto e, recusam o medo e o sofrimento causados pelo comportamento inadequado. Ele se volta para a negação, repressão, mentiras, racionalizações e outras defesas para o ajudarem a enfrentar o acontecido.
Por isso, sempre que os dependentes químicos usam drogas, justificam para anular a gravidade dos seus atos e sem querer, se entregam à dependência química mais profunda.
Os dependentes químicos usam drogas e retiram-se emocional e mentalmente para a doença da dependência química a fim de receber apoio para a sua ação. Este movimento interno faz que fiquem isolados e afastados do mundo e dos outros. Perdem mais humanidade. Isto cria solidão e um anseio de sair e comunicar, o que se torna internamente noutro sinal para usar drogas.
O processo adictivo tem o poder de criar necessidade por si. Atuar sentimentos repetidamente, com a obsessão mental, vão fazer surgir outra forma de entrega à dependência química que irá estabelecer um controle mais firme. A perda de controle do comportamento, a expressão da perda de controle interno do Eu em relação ao dependente químico.
Exemplos de promessas do dependente químico
• Dependente químico: “Traz-me o teu sofrimento, e terás alívio.”;
• Tradução: “Traz-me o teu sofrimento, e terás a ilusão do alívio.”;
- Dependente químico: “Vou te Libertar”;
- Tradução: “Vou te possuir”;
- Dependente químico: “Passa o tempo comigo, confia em mim, não confie em mais ninguém”;
- Tradução: “Passa o tempo comigo, eu te ensino a desconfiar dos outros.”;
- Dependente químico: “Eu te ensino uma forma de não enfrentar problemas”;
- Tradução: “Não existe tradução aqui. A afirmação é uma mentira.”
Rituais doentios do dependente químico
Os rituais são muito importantes para o dependente químico. É nesta fase de desenvolvimento da doença que o comportamento do dependente será mais ritualizado. São muitas as razões para criar rituais.
Quais as funções que os rituais geralmente desempenham? E porque são relevantes para o dependente químico?
Os rituais são importantes por várias razões. Eles ligam-nos às nossas crenças e valores, e nos unem a pessoas que tem as mesmas. Asseguramo-nos das nossas crenças e valores através do ritual, pois ele fortalece os nossos laços com o que quer que seja que ele representa;
Num ritual, a pessoa “exprime com o corpo aquilo que pensa.” São afirmações de valor. Na dependência química, os rituais são afirmações de valor sobre as crenças do dependente químico, e são totalmente opostos às crenças do Eu. Na dependência química, a pessoa exprime com o corpo a lógica adictiva que existe no seu espírito.
Os rituais são uma forma de linguagem – uma linguagem do comportamento. Os rituais falam da nossa fé e dos nossos valores e crenças atuais, quer eles sejam positivos, quer negativos.
Como exemplo, um aniversário, os rituais nos ligam às pessoas. Há coisas previsíveis: quem chegará na hora e quem se atrasará; quem dirá tolices ou falará sério. Nosso envolvimento no ritual se torna uma declaração a todos (e especialmente para nós) sobre o que achamos importante. Nós acreditamos que agimos da forma correta, mesmo não gostando de aniversário ou de enviar mensagem de aniversário, porém depois de fazer, achamos que era o certo.
A forma de agir está no próprio ritual, que diz, “faça desta maneira” e nós agimos assim. No ritual da festa, as pessoas cantam os “Parabéns”, sorriem, dizem graças, levam presentes e comem.
Dependentes químicos em seus rituais e comportamentos compulsivos, atuam segundo normas prescritas. Pelo seu comportamento, apoiam o processo e o sistema de crenças da dependência química.
Além de nos ligarem a crenças e valores e a outras pessoas com convicções semelhantes, os rituais proporcionam bem-estar por se poderem prever. Há rigidez nos rituais, eles se baseiam na consistência, primeiro se faz isto, e depois aquilo.
Nem sempre nos percebemos desse bem-estar, mas ele existe. Reparamos nele quando a sequência do ritual é alterada ou omitida e sentimos desconforto.
Os dependentes químicos ritualizam o comportamento pelo bem-estar que lhes traz o fato deles serem previsíveis. Eles também ritualizam as ações e comportamentos que geram entusiasmo e excitação.
Os rituais servem de conforto em tempos de crise ou de conflito. Comportamentos ritualizados nos levam a regressar às nossas crenças e o bem-estar, que nelas encontramos. Quando a vida entra em turbilhão, procuramos coisas consistentes. Em tempestades, voltamos ao nosso porto e origem.
Os dependentes químicos: em crises e tensões correm para o bem-estar que encontram nos rituais. Para eles, os ritos da dependência química vão ligá-los a uma crença, um valor e a um estado de espírito – um sentimento que creem encontrar conforto.
Os rituais são afirmações a respeito do que as pessoas têm fé. Os dependentes químicos não têm fé nas pessoas, o comportamento que adotam com um objeto ou acontecimento define o rito adictivo, que se transforma com o tempo num rito bem definido. Cada parte do ritual é importante para realçar a mudança de humor.
Os dependentes químicos têm os seus rituais preferidos.
Um dependente químico ao sexo fala do seu ritual favorito em pormenor: A inquietação começava ao sair do trabalho. Comprava revista pornográfica e ao chegar em casa, preparava uma bebida e sentava-se, folheando vagarosamente a revista. Depois de alguns copos, já tinha atingido a excitação, ia ao armário e vestia as roupas (tinha alguns conjuntos que achava atraentes). Então ia a um bar para beber mais. Na volta para casa, parava na sauna e fazia sexo com uma prostituta. Sentia-se envergonhado e prometia nunca mais fazer o mesmo.
Este ritual se repetia duas ou três vezes por mês. Cada parte dependia da que a precedia, e tinha um determinado significado para ele. De forma estranha, este ritual ajudava-o a sentir-se menos envergonhado em relação ao seu comportamento.
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Escolhas e rituais
É através dos rituais e da fé que temos que esperamos resolver o conflito interno, quando confrontados com escolhas. Ao voltarmos para os rituais, fazemos uma escolha. Devo fazer isto ou aquilo? Corresponde a escolha para resolver o problema.
Um dependente químico sente uma grande tensão interior: “Uso drogas ou não?” isto pode se arrastar por semanas, ou estar permanentemente presente. Grande parte do sofrimento da dependência química é causado pela tensão. O dependente químico quando está no ritual sente alívio desta tensão, o conflito fica momentaneamente resolvido: fez uma escolha. Há um sentimento de libertação.
Dependente químicos enfrentam um tipo de stress ou tensão, causada pela vergonha de usar drogas. A tensão interna causada por usar ou não, fica resolvida de momento. Esta libertação é demonstrada no exemplo anterior: um dependente químico ao sexo lutava se iria ou não atuar ao voltar do trabalho.
Na maior parte conseguia chegar em casa. Ao decidir comprar a revista pornográfica, à noite já não lhe pertencia, o dependente tomou conta. A luta interior tinha acabado. Tinha se rendido à sua dependência. A discussão, a luta entre o Eu e o dependente terminava. Às vezes, desistia só para calar essas vozes interiores.
A libertação da tensão reforça o processo doentio da dependência. Interiormente, se sentia melhor naquele momento, por escolher a ação. Encontra-se paz na rendição. Chamo a isto rendição negativa.
A comunidade e os rituais do dependente químico
A nossa comunidade nos dá orientação e regras de conduta. Os rituais que praticamos nos ligam a uma comunidade, mesmo que fizermos sozinhos. Se orarmos em privado, criamos laços com o grupo que usa e acredita nessa oração.
Os rituais do dependente químico realizam-se em particular ou dentro de um grupo que não existem verdadeiros laços de afeto entre as pessoas. Os elos entre os participantes do grupo são a forma comum de usar drogas.
As relações do dependente químico são superficiais e privadas; ele tem controle total. O dependente químico interior não deseja estar com outros, prefere estar só ou com dependentes químicos que conhecem, aceitam seus ritos adictivos.
• O alcoólico bebe sozinho ou com colegas de bebedeiras;
• O ritual bulímico de comer e vomitar é privado, mas o ritual constitui um elo em relação a comunidade de membros desconhecidos. Talvez só se encontrem em recuperação da dependência à comida;
• O dependente a jogo prefere estar sozinho, reconhecem outros pela forma de jogar, símbolos que ostentam e lugares que frequentam. Fazem silenciosamente; se falarem é a respeito do jogo;
• O dependente ao sexo vê filmes pornográficos para ficar só no mundo da dependência. Se atuar com alguém, vai ser sem palavras, mas com sinais adictivos a fim de saber quem irá fazer o quê no rito doentio. Depois, cada um deles parte silenciosamente e leva a vergonha da compulsividade.
A dependência química é uma forma negativa de culto, através de uma ligação com o lado negativo da pessoa, o dependente químico, à custa do Eu. O Eu no ritual adictivo, sente-se mau com o que é obrigado a observar e participar, mas o poder da doença o mantém cativo.
Comportamento e rituais do dependente químico
O objetivo do ritual é intensificar o comprometimento da pessoa, aprofundar certa perspectiva do mundo. Os rituais do dependente químico têm este mesmo objetivo, o de empurrar a pessoa mais profundamente para a dependência química.
Ao usar drogas, o sistema de crenças e defesa da dependência química ficam fortalecidos. Os dependentes químicos voltam para os sistemas adictivos (usam a lógica adictiva) a fim de encontrar a explicação satisfatória para as suas ações ou terão dificuldade em aceitar suas ações.
Nossa cultura é formada por grupos com rituais, regras de conduta que ligam seus membros. Não é diferente para os dependentes químicos. Conhecer e participar dos rituais do grupo é sinal de pertencimento.
Para os dependentes químicos, o objeto da adição é o símbolo do seu relacionamento com o mundo. É a afirmação que, em sua vida, está escolhendo o álcool e outras drogas ou por acontecimentos e sentimentos que causam o prazer intenso e compulsivo, em detrimento a pessoas e relações espirituais.
Cada vez que o dependente químico se envolve num ritual da dependência química, o objeto ou acontecimento, como símbolo, adquire mais poder. Os dependentes químicos são fanáticos aos seus rituais.
• A comida é um símbolo poderoso para o dependente à comida;
• O sexo ou qualquer coisa relacionada com o sexo tem um poder total sobre o dependente ao sexo;
• Para o alcoólico, o uso do álcool acaba por se tornar parte do ritual sagrado, mais forte do que a própria vida.
Desenvolver rituais saudáveis
Os dependentes químicos têm um ritual rígido, para usar drogas. É importante compreender isto, as pessoas em recuperação precisam aceitar que o seu dependente tem formas preferidas de atuar; que há lugares, ocasiões e comportamentos perigosos que precisam evitar.
• Um dependente às compras em recuperação tinha as sextas-feiras, ao fim da tarde como o momento para atuar os seus ritos próprios, ele agora terá de garantir que estará acompanhado nos próximos fins de tarde de sexta-feira;
• Um dependente ao sexo tem como ritual passear por determinado lugar, precisará manter-se afastado dessa parte da cidade durante tempos.
Rituais saudáveis nos ligam a outros, família e amigos, a princípios espirituais ou a comunidade de mútuo ajuda. Os rituais dos dependentes químicos são invertidos: o seu objetivo principal é o de isolar a pessoa dos outros. Os rituais saudáveis ajudam a sentir-nos melhor; os rituais dos dependentes químicos fazem-nos sentir pior. Os rituais saudáveis ligam-nos às pessoas que nos têm afeto, os rituais adictivos ligam-nos ao nosso lado perigoso ou ao lado perigoso dos outros.
Os rituais saudáveis ajudam-nos a ter melhores relações; os rituais dos dependentes químicos destroem as relações. Os rituais saudáveis ajudam-nos a ter orgulho de nós e dos nossos amigos; os rituais adictivos causam vergonha. Os rituais saudáveis são como uma comemoração da vida; os rituais dos dependentes químicos conduzem à morte.
Conclusão: a luta interior do dependente químico
O dependente químico acredita que deveria ser capaz de controlar a dependência química; cada vez que usa drogas, o Eu sente-se mais envergonhado, pois o Eu desaprova o sistema de crenças e a forma de tratar os outros do dependente químico, mas, devido à perda de controle, é incapaz de parar o processo. É nesta fase mais avançada da dependência química que a pessoa começa a sentir o imenso poder da doença e acaba, na realidade, por se render.
A pessoa tenta estabelecer limites ao comportamento, o que também não traz resultados. Isso provoca mais vergonha. Finalmente, a pessoa rende-se à presença da dependência química.
Antes da rendição, há o esforço para conter a dependência química em vez de tentar vencê-la. A parte principal da dependência é interior e as energias da pessoa são dirigidas para dentro, para a relação adictiva, trazendo mais isolamento.
Um dependente químico na ativa é um solitário e, na verdade, prefere estar sozinho. A presença de alguém que deseje intimidade é uma contrariedade. Enquanto o Eu anseia por contato humano, ajuda ser ouvido e se interessar por ele.
Fabrício Selbman é Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento, e também é:
- Formado em marketing e pós-graduado em gestão empresarial;
- Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialização na Europa sobre o modelo de tratamento Terapia Racional Emotiva (TRE);
- Psicanalista pela Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Professor de Especialização na Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento.