A dependência química é um desafio complexo que afeta não apenas o indivíduo que luta contra a adição, mas também sua rede de relacionamentos, incluindo a família. A dinâmica familiar desempenha um papel fundamental na recuperação do dependente químico e, em muitos casos, o vício pode ser acompanhado de trauma familiar.
De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a dependência química é definida pela manifestação de uma combinação de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos que sugerem que a pessoa persiste no uso de uma substância, mesmo quando isso resulta em problemas significativos em suas relações e vida cotidiana.
É fundamental que os familiares dos dependentes químicos recebam assistência e apoio, uma vez que frequentemente enfrentam desafios significativos devido à situação. No tratamento de famílias com membros dependentes, são empregadas diversas estratégias, incluindo o desenvolvimento de programas de treinamento que envolvem tanto o dependente quanto seus familiares.
Essas abordagens visam fornecer orientação e ferramentas para enfrentar os desafios associados à dependência química, promovendo a recuperação e o bem-estar tanto do indivíduo como de sua família.
O TRAUMA FAMILIAR CAUSADO PELA DEPENDÊNCIA QUÍMICA
Um dos aspectos mais difíceis de lidar com a dependência química é o trauma que causa à família do dependente. Esse trauma familiar é uma manifestação complexa de emoções, conflitos e desafios que se desenvolvem à medida que a dependência persiste.
A dependência de substâncias pode criar um trauma familiar profundo, desencadeando uma série de desafios emocionais e psicológicos que afetam todos os envolvidos. Esse trauma familiar pode ser um ciclo vicioso, onde a dependência química do membro afeta causa de dor e sofrimento na família, e essa dor, por sua vez, pode intensificar a dependência e tornar a recuperação ainda mais desafiadora. O impacto do trauma pode se manifestar de várias maneiras, desde a proteção das relações familiares até problemas de saúde mental em membros não dependentes.
A DINÂMICA DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA NA FAMÍLIA
Quando um membro da família luta contra a dependência química, toda a unidade familiar fica envolvida na dinâmica do vício. De acordo com o artigo publicado pela revista psiquiatria clínica da Universidade Federal de São Paulo, psicóloga e psicoterapeuta familiar e de casal, a família de alguém com dependência química pode ser vista como uma complexa rede de interações na qual seus valores, crenças, emoções e comportamentos exercem influência significativa sobre seus membros, ao mesmo tempo em que são impactados por eles.
A preocupação constante, o medo do que o futuro reserva e o estresse emocional tornam-se uma parte intrínseca da vida familiar. Os comportamentos erráticos e a imprevisibilidade do adicto podem criar um ambiente de tensão e desconfiança.
CULPA E VERGONHA
A dinâmica familiar em torno da dependência química muitas vezes é acompanhada de intensos sentimentos de culpa e vergonha. Os familiares podem se sentir responsáveis pela evolução do vício, questionando-se se poderiam ter feito mais para evitar que isso acontecesse. Essa auto atribuição de culpa é comum, mas frequentemente injustificada, uma vez que a dependência química é uma condição complexa que envolve múltiplos fatores, não controláveis pelos familiares.
Além da culpa, a vergonha também desempenha um papel significativo. As famílias podem sentir vergonha do estigma social associado ao consumo de substâncias. Essa vergonha muitas vezes os impede de buscar ajuda ou compartilhar sua situação com outros. O medo do julgamento dos outros pode levar à manutenção do segredo e do isolamento, o que pode ser prejudicial tanto para o dependente quanto para os familiares.
A superação desses sentimentos de culpa e vergonha é um passo fundamental na busca de apoio e tratamento eficaz para o dependente e sua família. É importante lembrar que a dependência química é uma condição de saúde complexa, e sua ocorrência não deve ser atribuída a um único fator.
O apoio emocional, a educação sobre a dependência e a busca de ajuda profissional podem ajudar as famílias a enfrentar esses desafios emocionais e a desenvolver estratégias de enfrentamento saudáveis.
RELAÇÕES INTERPESSOAIS AFETADAS
A dependência química causa um profundo impacto nas relações familiares, manifestando-se de várias maneiras. Em muitas famílias, a dependência química gera conflitos contínuos, com discordâncias sobre questões relacionadas ao uso de substâncias, responsabilidades domésticas e financeiras. Essas divergências frequentes levam a brigas e tensões constantes.
À medida que a dependência química progride, os membros da família frequentemente se sentem cada vez mais isolados. A comunicação eficaz se degrada, e os familiares podem sentir que não têm espaço para expressar seus sentimentos e preocupações. Isso resulta em um profundo senso de desconexão entre os membros da família.
Em casos mais graves, a dependência química pode contribuir para a violência doméstica e o abuso. O dependente pode manifestar comportamentos agressivos, levando a abusos verbais, emocionais ou físicos dentro de casa, criando um ambiente tóxico e prejudicial.
BUSCAR APOIO PROFISSIONAL É IMPORTANTE
A busca de ajuda profissional é um dos pilares fundamentais na jornada de enfrentamento do trauma familiar associado à dependência química. É buscar apoio altamente recomendado, não apenas para o membro da família que enfrenta a dependência, mas também para a família como um todo. Terapeutas, psicólogos, psiquiatras e grupos de apoio especializados em dependência química são recursos valiosos nesse processo.
Esses profissionais possuem a expertise necessária para oferecer orientação, suporte emocional e estratégias específicas que abordam as complexas dinâmicas familiares relacionadas à dependência. Eles podem ajudar os membros da família a compreender melhor a natureza da dependência química, bem como fornecer ferramentas para lidar com suas próprias emoções e desafios decorrentes da situação.
Os grupos de apoio são uma fonte adicional de conforto e compreensão, uma vez que permite que os familiares compartilhem suas experiências e aprendam com os desafios e sucessos de outros que enfrentam situações semelhantes. Eles oferecem um espaço seguro para expressar emoções, trocar informações e obter apoio prático.
Em suma, o apoio profissional é um alicerce crucial na jornada de recuperação da família diante da dependência química de um ente querido. Ele ajuda a criar uma rede de apoio robusta, fornecendo as ferramentas e o conhecimento necessário para enfrentar o trauma familiar e trabalhar em direção à cura e ao bem-estar.
COMUNICAÇÃO EMPÁTICA E CUIDADOSA
Manter as linhas de comunicação abertas com o membro da família que está enfrentando a dependência química é um pilar essencial na jornada de recuperação. A comunicação empática é uma abordagem vital nesse processo, pois pode influenciar significativamente o bem-estar e a disposição do indivíduo para buscar ajuda.
Praticar a empatia é um ato de compreender as emoções e perspectivas do ente querido com dependência. É importante reconhecer que a dependência é uma doença complexa e que o indivíduo pode estar sofrendo com sentimentos de culpa, vergonha e isolamento. Ao se comunicar com empatia, você cria um ambiente de compreensão e apoio, que é fundamental para que uma pessoa se sinta menos julgada e mais encorajada a buscar ajuda.
Evitar julgamentos é um elemento fundamental da comunicação empática. Julgar o comportamento do membro da família com dependência pode afastá-lo e tornar a busca de ajuda mais difícil. Em vez disso, concentre-se em expressar preocupação, amor e apoio. Saiba que a dependência química é uma doença, não uma vulnerabilidade moral, e que a recuperação é possível com o apoio adequado.
AS VÁRIAS FACES DO TRATAMENTO: PSICOTERAPIA FAMILIAR, DESINTOXICAÇÃO, TERAPIAS
O tratamento para transtornos relacionados ao uso de substâncias é um processo abrangente que incorpora diversas abordagens terapêuticas, cada uma desempenhando um papel essencial na recuperação. As principais facetas desse tratamento incluem a psicoterapia, a desintoxicação e várias outras terapias especializadas, formando um conjunto de recursos terapêuticos multifacetados para enfrentar os desafios da dependência e promover a saúde e o bem-estar.
Reconhecer o trauma, buscar ajuda profissional e construir uma rede de apoio forte são passos cruciais em direção à cura e à recuperação tanto para o dependente quanto para sua família. O trauma pode ser superado, a jornada de recuperação pode ser um caminho para a cura e para um futuro mais saudável e resiliente.
PSICOTERAPIA FAMILIAR
No início, estudos sobre dependência química focaram apenas no dependente, às vezes não considerando o papel importantíssimo da família. Segundo um artigo publicado na Revista Científica da Universidade Católica Portuguesa, é dito que o sistema familiar é visto como um todo, uma globalidade, em que o todo é mais do que a soma das suas partes. Visto por essa nuance, hoje em dia, as famílias são uma grande fonte de ajuda no tratamento da dependência, pois a família é justamente um sistema que necessita de orientação e acompanhamento para que o resultado do tratamento seja, de fato, mais eficiente. A psicoterapia familiar é uma parte integrante do tratamento da dependência química, reconhecendo que a recuperação não envolve apenas o indivíduo com dependência, mas toda a família. Ela visa melhorar a dinâmica familiar,ajudando a superar o trauma causado, proporcionar apoio e criar um ambiente favorável à recuperação e ao bem-estar de todos os membros da família.
DESINTOXICAÇÃO
A desintoxicação é um processo que visa ajudar o paciente a se livrar das substâncias que está usando e a lidar com os sintomas de abstinência. Esse processo é adaptado de acordo com a situação individual e pode ocorrer em diferentes ambientes, como hospitais ou clínicas de reabilitação, dependendo da avaliação profissional e da gravidade do quadro do paciente. É uma fase inicial que visa a estabilização física do indivíduo, permitindo que seu corpo elimine as substâncias tóxicas de forma segura. Durante esse processo, os sintomas de abstinência, que podem variar de leves a graves, são gerenciados para minimizar o desconforto e os riscos à saúde do paciente. A desintoxicação pode ser acompanhada de outras terapias, como psicoterapia, pode ajudar o paciente a compreender as razões subjacentes para o uso de substâncias, desenvolver estratégias de enfrentamento saudáveis e manter a abstinência a longo prazo. Portanto, a desintoxicação não é apenas um processo de purificação física, mas também uma oportunidade de iniciar a jornada de recuperação.
TERAPIAS
De acordo com um artigo publicado pela Revista da Faculdade de Psicologia da PUC-SP, na perspectiva da reabilitação psicossocial, as abordagens psicoterapêuticas desempenham um papel fundamental no tratamento da dependência química. Duas das abordagens mais amplamente utilizadas são a Psicoterapia Psicanalítica e a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC).
Psicoterapia Psicanalítica:
Abordagem
A Psicoterapia Psicanalítica, desenvolvida por Sigmund Freud, se concentra na exploração das camadas mais profundas do inconsciente do paciente. Ela busca entender as raízes psicológicas da dependência química, examinando experiências passadas, traumas e conflitos não resolvidos.
Objetivo
O objetivo é trazer à consciência os padrões de pensamento e comportamento que podem estar contribuindo para a dependência e trabalhar na resolução dessas questões subjacentes.
Processo
Os pacientes são incentivados a falar livremente sobre seus pensamentos, sentimentos e memórias, enquanto o terapeuta analisa os padrões emergentes. O foco está na autorreflexão e na resolução de conflitos internos.
Aplicação
A Psicoterapia Psicanalítica é frequentemente usada para indivíduos que têm dependência química com causas psicológicas profundas, como traumas ou questões emocionais não resolvidas.
Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC):
Abordagem
A TCC é uma abordagem de curto prazo que se concentra em identificar e modificar pensamentos disfuncionais e comportamentos associados à dependência química. Ela se baseia na premissa de que nossos pensamentos influenciam nossos sentimentos e comportamentos.
Objetivo
O objetivo é ajudar os pacientes a desenvolver habilidades para identificar gatilhos, evitar situações de risco e desenvolver estratégias de enfrentamento mais saudáveis.
Processo
Os pacientes trabalham com o terapeuta para identificar pensamentos automáticos negativos relacionados ao uso de substâncias e, em seguida, aprendem a desafiá-los e substituí-los por pensamentos mais realistas e saudáveis.
Aplicação
A TCC é frequentemente usada para tratar a dependência química, pois oferece ferramentas práticas para evitar recaídas e gerenciar o comportamento de busca por substâncias.
Ambas as abordagens têm suas vantagens e são escolhidas com base nas necessidades e características do paciente. A Psicoterapia Psicanalítica busca entender as raízes profundas da dependência, enquanto a TCC fornece ferramentas práticas para lidar com situações do dia a dia.
CONCLUSÃO
Em conclusão, a dependência química não afeta apenas o indivíduo dependente, mas também toda a dinâmica familiar. O trauma causado pela dependência é complexo e pode desencadear uma série de desafios emocionais, psicológicos e interacionais. A família muitas vezes enfrenta sentimentos de culpa e vergonha, além de lidar com conflitos, isolamento e desconexão.
No entanto, a busca de apoio profissional desempenha um papel fundamental na recuperação da família. Terapeutas, psicólogos, psiquiatras e grupos de apoio especializados em dependência química oferecem orientação, suporte emocional e estratégias específicas para enfrentar o trauma familiar.
Além disso, a comunicação empática e cuidadosa com o membro da família que enfrenta a dependência é essencial. Praticar a empatia e evitar julgamentos cria um ambiente de apoio que incentiva a busca de ajuda.
O tratamento da dependência química abrange várias abordagens terapêuticas, incluindo a psicoterapia, a desintoxicação e terapias especializadas, como a Psicoterapia Psicanalítica e a Terapia Cognitivo-Comportamental. Cada uma dessas abordagens desempenha um papel importante no processo de recuperação, abordando tanto as causas subjacentes da dependência quanto às estratégias práticas de enfrentamento.
Em resumo, o enfrentamento do trauma familiar causado pela dependência química requer um esforço conjunto, envolvendo apoio profissional, comunicação empática e uma variedade de abordagens terapêuticas. Com essas ferramentas e recursos, a família pode progredir em direção à cura e ao bem-estar, tanto para o dependente quanto para todos os membros envolvidos.
O trauma pode ser superado, a jornada de recuperação pode ser um caminho para a cura e para um futuro mais saudável e resiliente. Enfrentar o trauma é o primeiro passo para a cura, e a jornada de recuperação oferece a oportunidade de transformar o sofrimento em força, construindo um futuro mais saudável e resistente para todos os envolvidos.
Fabrício Selbman é Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento, e também é:
- Formado em marketing e pós-graduado em gestão empresarial;
- Especialista em Dependência Química pela UNIFESP. Especialização na Europa sobre o modelo de tratamento Terapia Racional Emotiva (TRE);
- Psicanalista pela Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Professor de Especialização na Associação Brasileira de Estudos Psicanalíticos do Estado de Pernambuco (ABEPE);
- Diretor do Grupo Recanto, rede de três clínicas de tratamento de dependentes químicos referência no Norte e Nordeste nesse segmento.